
Ala “Manfestoches” da Paraíso do Tuiuti faz crítica a protestos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff Imagem: Bruna Prado/UOL
O Carnaval de 2018 no Rio de Janeiro foi marcado por desfiles embalados por sambas enredos que podem ser caracterizados como “samba de protesto”. Utilizo a expressão com cautela, contudo, por saber que a mesma pode ser redutora da complexidade de enredos e de tudo aquilo que envolve a cultura da organização de um desfile de carnaval. A ênfase na crítica social e política não é de estranhar. Em especial se considerarmos o atual estado da Democracia no Brasil após o golpe institucional de 2016 que destituiu a Presidente eleita, sem crime de responsabilidade, e num jogo político de evidente manipulação realizado por setores das elites nacionais para entronizar no poder um vice-presidente que se tornou o presidente mais impopular após a redemocratização do país (um vampiro neoliberalista, na feliz e incisiva definição da Paraíso do Tuiuti).

O presidente Michel Temer retratado como um vampiro neoliberal. Foto: Marcos Serra Lima/G1
O agravamento da crise política e social no Brasil e Rio de Janeiro produz sérias repercussões no plano dos direitos sociais e aumento dos índices de criminalidade. É muito animador que o carnaval, a nossa maior festa popular, não se aliene de tudo isso.
As escolas de samba Beija-Flor, da cidade de Nilópolis, e Paraíso do Tuiuti, do bairro de São Cristóvão, respectivamente, campeã e vice-campeã do carnaval, foram os destaques da crítica social. Outras escolas se apresentaram no mesmo diapasão crítico, tal como a Mangueira que apontou suas baterias e alegorias para o Bispo-Prefeito-Bispo Crivella que tenta mas não consegue esconder que foge do Carnaval e de outras culturas populares como o diabo foge da Cruz.
Quero falar, contudo, especificamente do fenômeno da Paraíso do Tuiuti que foi mais fundo na crítica denunciando a persistência da escravidão como matriz de nossas injustiças e desigualdades sociais e o arranjo golpista-neoliberal que habita, hoje, o governo federal. O samba da Tuiuti casou com o enredo e o desfile empolgou o Brasil que ainda se quer consciente, crítico e mobilizado. A escola da comunidade de São Cristóvão realizou a crítica das injustiças sociais do tempo presente puxando os fios de história para lembrar da escravidão de ontem e a de hoje, “mais viva do que nunca”, que aprisiona milhões no “cativeiro social” cujos produtos consumimos e que, pela força da alienação, tem a sua existência por nós negligenciada, tal como afirma a sinopse do enredo distribuída pela escola e sobre a qual comento ao final desta postagem.

Trecho da entrevista do carnavalesco Jack Vasconcelos Bruna Fantti (Jornal ODia – 13/02/2018)
O carnavalesco Jack Vasconcelos sacudiu o debate político no Brasil mostrando junto com a comunidade e amigos do Morro do Tuiuti que tanto a política pode ser uma festa quanto a festa pode ser política. O Diretor de Carnaval da Tuiuti, Thiago Monteiro, assim definiu a sintonia popular com o enredo da escola: “Nós falamos o que o povo quer” (Entrevista ao Intervozes/Carta Capital).
No dia seguinte ao desfile, e com as redes sociais fervilhando de análises – das boas e das que nada contribuem para a debate e o enfrentamento da crise política em que nos encontramos – ocorreu-me que a qualificada e profunda mensagem artística da Tuiuti deveria ser levada para as salas de aula e espaços públicos para animar os diálogos que precisamos fazer para pensar o Brasil em profundidade.
Assim, disparei em minha conta do Twitter:
“Simbora exibir o desfile da Paraíso do Tuiuti em nossas aulas? Escolas e universidades em todo o Brasil discutindo a persistência da escravidão, as desigualdades, o golpe na Democracia e Direitos etc. Isso tudo com coerência e beleza. Segue um compacto”:
As boas ideias são aquelas que encontram correspondência e não vivem sozinhas. E assim foi. Não tardou para que muitos, em especial professoras, professores e estudantes, comentassem que haviam pensado o mesmo. Então, vamos juntos nessa! Simbora levar essa expressiva e potente provocação carnavalesca de 2018 para a escolas brasileiras. O que farei a seguir é listar sugestões de conteúdos (vídeos e textos) sobre a Tuiuti e com os quais me deparei nas redes sociais nos últimos dias. O que virá não será “a lista” mas “uma lista” de tantas outras possíveis. Não há, então, nenhuma pretensão de exaustividade nesta seleção inicial mas tão somente a percepção de que não vale a pena organizar exibições, leituras e promover diálogos em torno de conteúdos que ampliem a polarização política, que sejam meras provocações, “lacrações”, ou que desqualifiquem interlocutores válidos, ainda que divergentes de nossas próprias posições políticas.
Sobre este trabalho ligeiro de seleção, inspiro-me diretamente em Umberto Eco que nos lembrou da importância de organizar boas listas neste nosso momento histórico de multiplicação de informações irrelevantes e mesmo não-informações que nascem para confundir e nos afastar da verdade e da complexidade do real.
Segue, então, a lista inicial que pretendo atualizar aqui no Blog tão logo outros conteúdos com as mesmas características acima se apresentem ao diálogo. Espero com isso contribuir de alguma forma com o trabalho de todos que se animarem a levar a Tuiuti à sala de aula de escolas e universidades. E também a centros culturais, bibliotecas, associações comunitárias, cooperativas e tantos outros lugares com pessoas animadas a cantar e refletir com o samba da Tuiuti que nos indaga: MEU DEUS, MEU DEUS, ESTÁ EXTINTA A ESCRAVIDÃO? (leia a letra do Samba Enredo da Paraíso do Tuiuti – 2018 – ao final da postagem)
Playlist (15 vídeos)
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Abre Alas – Liesa (Fichas técnicas das escolas de samba do grupo especial)
Abre Alas – Domingo (G.R.E.S. Beija Flor – pg. 303-367)
Abre Alas – Segunda-Feira (G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti – pg. 173-224; G.R.E.S Estação Primeira da Mangueira – pg. 277-348).
- Enredo da Paraíso do Tuiti – Sinopse. A sinopse do samba enredo da Paraíso do Tuiti é uma fonte instigante para a elaboração de um glossário de palavras-chaves e expressões com grande potencial heurístico e conceitual para animar planos de aula e debates nas escolas, quer seja no plano histórico, socio-antropológico ou geográfico. Recomendo que a mesma seja lida na íntegra, porém, destaco algumas palavras-chave: impérios; civilizações;alienação; injustiças; discriminação; eslavos; escravos; bizantinos; ganância mercantilista; exploração do continente negro; mercado; senhores mouros; norte africano; servos de pele alva e olhos azuis mediterrâneos; coroas europeias; chefes negros; raça; seres humanos/mercadorias. E frases: Pão e circo para aclamação de uma bondade cruel…não houve um preparo para a libertação e ela não trouxera cidadania, integração e igualdade de direitos … Grilhões do cativeiro social. Ainda é possível ouvir o estalar de seu açoite pelos campos e metrópoles. Escravidão. Consumimos seus produtos. Negligenciamos sua existência. Não atualizamos sua imagem… preservamos nossas consciências limpas sobre as marcas que deixou tempos atrás. Segue vivendo espreitada no antigo pensamento de “nós” e “eles” e não nos permite enxergar que estamos todos no mesmo barco, no mesmo temeroso Tumbeiro, modernizando carteiras de trabalho em reformadas cartas de alforria.
- (Atenção: a bibliografia completa da sinopse pode ser encontrada acima: Abre Alas – Segunda-Feira).
Artigos, entrevistas e reportagens
- Assim o Carnaval 2018 recuperou o espírito crítico com a classe política no Brasil. As críticas à situação do país passam das ruas aos sambódromos, com enredos que atacam diretamente figuras políticas e medidas do Governo (El País).
- Carnavalesco Jack Vasconcelos: ‘Tem que se posicionar’. Com críticas à Reforma Trabalhista, enredo da Paraíso do Tuiuti foi o mais comentado da Avenida (Entrevista – Jornal ODia).
- Enredo da Tuiuti põe o dedo na ferida. A escola só escancarou o que já estava claro em pesquisas de opinião – por Laura Carvalho (FSP – 15.02.2018).
- Da escravidão a Temer vampiro: Tuiuti nos lembra que Carnaval é contestação… – por Leonardo Sakamoto
- “Nós falamos o que o povo quer”, diz diretor de carnaval da Tuiuti – por Intervozes — publicado 13/02/2018 19h01. Em entrevista ao Intervozes sobre repercussão da crítica política feita pela escola de samba, ele afirma que resposta depende da sociedade
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Samba Enredo 2018 – Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?
G.R.E.S Paraíso do TuiutiIrmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arrozEu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava genteÊ Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitorAmparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de corE assim quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruelMeu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro socialNão sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação
Parabéns pelo excelente texto sobre a escola que foi campeã de 2018, eleita pelo povo brasileiro..
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Oi Carrano ! Muito bom o conteúdo, bom para socializar com professores e alunos! Abraços prof. Alexandre da FUNLAR
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Boa seleção! Tuiuti, através da carnavalização, deu eco aos nossos gritos contidos na garganta. Crítica e posicionamento na avenida que tomou proporções de massa. Que esta Escola desfile nas escolas! Vamos junt@s!
Segue abaixo o link do Esquerda Online, entrevista com o historiador Luiz Antônio Simas sobre o carnaval. Não necessariamente sobre a Tuiuti, mas vale a pena conferir. Segundo a página:
“A equipe do Esquerda Online foi recebida no quintal do historiador Luiz Antonio Simas, no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, para uma entrevista exclusiva para o nosso Especial de Carnaval. O sociólogo Bernardo Pilotto e a comunicadora do nosso portal Gisele Peres conduziram a conversa com o pesquisador, sobre temas como a história do Rio de Janeiro; as tensões e disputas que marcam a cidade e a data desde a diáspora africana; o papel das escolas de samba, enredo e mercado e a realidade do Carnaval diante da crise do País e do Rio”.
https://esquerdaonline.com.br/2018/02/08/no-quintal-com-simas-carnaval-e-historia/
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