
Mural (Murga) – Cidade de Montevidéu. foto @paulocarrano
Como compreender as tensões intrínsecas à juventude e respeitar essa diversidade cultural para estabelecer um ambiente em que os jovens sintam que seus saberes são acolhidos
Artigo* Paulo Cesar R. Carrano
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Grupo de Pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro
Ainda que o professor diga que “tem alunos”, os estudantes são mais do que isso. Mesmo que vistam uniformes, são corpos múltiplos. Também são negros, brancos, índios. São eles e elas – às vezes são elas/eles e eles/elas na plenitude da diversidade de gênero – e se constituem como representantes de vários universos culturais que transcendem os muros da escola. Qual instituição ainda não se viu diante da necessidade de lidar com as referências extramuros que chegam pelas expressões juvenis, muitas vezes de forma clandestina? Roupas da moda, acessórios, piercings, bonés – ah, os bonés dos adolescentes! -, tatuagens, aparelhos eletrônicos… a lista poderia se estender infinitamente. As maneiras como se lida com isso e se organiza tempos, espaços, relacionamentos e conteúdos de aprendizagem podem produzir conflitos e redundar em diversos tipos de violência simbólica e física.
No título deste artigo reside o desafio da escolha de como se relacionar com essa multidão de identidades. Ao ignorar as referências culturais dos alunos, arrisca-se a ampliar a distância entre as gerações. Caso o educador resolva combater aquilo que julga ser uma invasão bárbara de referências juvenis, avançaria para o perigoso terreno de ter para si um inimigo e ficar restrito à mão única da transmissão de conteúdos e valores arbitrados como válidos pela instituição.
Resta a opção do diálogo e, do meu ponto de vista, a única que permite que aquilo que os jovens pensam, sentem e são em seus territórios se constitua também como arena de negociação de saberes, valores e experiências que podem tornar estimulante e democrática a aprendizagem. Estou falando muito mais da importância de reconhecer que alunos são sujeitos plenos e não incompletudes; não são entes passivos diante de conteúdos que necessitam somente ser introjetados.
Certa vez, uma jovem do Ensino Médio me indagou, numa clara crítica: “Será que a escola sabe aquilo que a gente sabe?”. Até hoje ela me faz pensar sobre quantas possibilidades desperdiçamos pelo simples fato de não nos interessarmos pelas experiências e saberes dos adolescentes.
Atualmente, reconhecemos na Educação escolar que o aluno é também um jovem e que existem várias juventudes (CARRANO, 2000; NOVAES, 2007). Junto dessa multiplicidade de maneiras de ser, há também a compreensão das intensas transformações pessoais e sociais relacionadas com as tecnologias de informação e comunicação (TIC). Graças a elas, os jovens possuem, hoje, um campo maior de autonomia frente às instituições do denominado mundo adulto.
Os espaços de constituição das subjetividades juvenis transcendem o ambiente da escola. Não é possível compreender o que ocorre nas salas de aula sem ter uma perspectiva não escolar (SPÓSITO, 2003). Onde quer que estejam, os jovens estabelecem interações que os afastam das referências do mundo adulto, em especial, de seus pais e professores. Os adolescentes realizam inúmeras atividades fora da escola. Desenvolvem, assim, uma espécie de currículo em torno de ações explicitamente educativas, e outras diretamente relacionadas com a sociabilidade.
Socialização online
Nos momentos livres, os jovens ocupam horas a fio na internet. Esse campo, interditado aos olhares vigilantes do mundo adulto, desafia nossa compreensão sobre como se processam os relacionamentos, a elaboração de saberes e as escolhas nas redes sociais online. Esse jogo se expressa no uso de canais de amizade, busca de conhecimentos, games cada vez mais interativos, namoros etc.
Pode-se dizer que aí se encontra um dos mais expressivos ambientes de experimentação para a constituição das identidades juvenis e para a realização de opções que sejam simultaneamente saudáveis para si e para o relacionamento com os outros (veja mais clicando aqui).
O espaço dessa nossa conversa não nos permitiria avançar para uma discussão aprofundada sobre as identidades coletivas. Importa dizer, contudo, que quando falamos delas não estamos apontando para unidades rígidas, e sim para corpos em relacionamentos sempre variados e surpreendentes. Imagine, então, o desafio que representa para um adolescente, e sua instável presença no mundo, tentar solucionar a pergunta “Quem sou eu?”. É no contexto da busca de respostas a isso que os grupos de pares se revestem de um papel central e organizador da experiência de ser adolescente. E, sendo uma relação, a identidade coletiva é um campo de tensão entre o nós e os outros; entre a definição instável da noção que temos de nós mesmos e o reconhecimento que os demais nos dão. Assim, desconhecer, ignorar, ou mesmo combater, maltratando essa força coletiva assumida por esse estudante/sujeito cultural, pode representar uma interdição ao diálogo. Isso, em última instância, representa a construção de distâncias, por vezes intransponíveis, entre aquele que precisa educar por ofício e o que necessita ser educado por estar em um processo intenso de constituição de si mesmo.
Que tal se abrir para o amplo universo das culturas juvenis e criar possibilidades de aprendizagem recíproca, aproveitando as memórias dos jovens que um dia fomos, e as experiências de nossos estudantes no presente? Só assim as escolas contribuirão para que as identidades não se excluam mutuamente. Talvez, as instituições de ensino sejam um dos poucos lugares em que os adolescentes podem colocar suas múltiplas referências em diálogo com os que lhes são diferentes. Nosso papel de educadores é vital para que as escolas se constituam em arenas públicas de conversação, escuta e compreensão mútua. Isso pode ser feito de muitas maneiras, desde que aceitemos que precisaremos perturbar os rígidos tempos de ensino e aprendizagem. Festivais, saraus poéticos e musicais podem ser organizados em parceria com os estudantes e com grupos do bairro. E por que não criar também canais para que as experiências ganhem o mundo em webradios, blogs, exposições e encontros pela cidade? Aproveite, temos um mundo todo pela frente.
Referências bibliográficas
BARRÈRE, A. L’éducation buissonniàre: quand les ados se forgent par eux-mêmes. Paris, Armand Colin, 2011.
CARRANO, P. C. R. Identidades culturais juvenis e escolas: arenas de conflitos e possibilidades. Diversia. Educación y Sociedad, v. 1, p. 159-184, 2009.
CARRANO, P. C. R. Jovens, escolas e cidades: desafios à autonomia e à convivência. Revista Teias (UERJ. Online), v. 12, p. 7-22, 2011.
CARRANO, P. C. R. Juventudes: as identidades são múltiplas. Revista Movimento – Juventude, Educação e Sociedade. Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, n. 1, maio de 2000, p. 11-27.
CARRANO, P. C. R., ALVES, N. Jovens em tempos de web 2.0. Presença Pedagógica, v. 18, p. 74-79, 2012.
NOVAES, R. R. Políticas de juventude no Brasil: continuidades e rupturas. In: FÁVERO, O., SPÓSITO, M. P., CARRANO, P. C. R., NOVAES, R. R. (orgs.). Juventude e contemporaneidade. Brasília, Unesco, MEC, Anped, 2007, p. 253-281.
SIBILIA, P. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro, Contraponto, 2012.
RESUMO (elaborado pela revista Nova Escola)
Os estudantes levam para a escola identidades individuais e coletivas construídas por meio de suas muitas relações. Tentar combatê-las ou afastá-las pode gerar desavenças e uma barreira intransponível entre quem educa e aquele que precisa ser educado. O melhor caminho é buscar entender as tensões intrínsecas à juventude e respeitar essa diversidade cultural para estabelecer um ambiente em que esses jovens sintam que seus saberes são acolhidos.
*Publicado originalmente na Revista Nova Escola – Nov 2015.
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