As escolas deveriam se convencer de que não são a fonte do acesso ao saber”


foto_paulo_carrano_entrevistaEntrevista com Paulo Carrano

Por Fátima de Oliveira e Marcelo Robalinho

Revista Coletiva – Número 17 | set/out/nov/dez 2015

A escola como espaço de reconhecimento do jovem, as diferentes realidades vividas pela juventude brasileira e a própria diversidade dessa categoria social constituem o foco da nossa entrevista com o mestre e doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Paulo Carrano. Pós-doutor pela Universidade de Lisboa, Carrano coordena o Observatório Jovem do Rio de Janeiro, vinculado à UFF, onde leciona na Faculdade de Educação. É coorganizador do livro Narrativas juvenis e espaços públicos (EDUFF/FAPERJ, 2014) e autor dos livros Os jovens e a cidade: identidades e práticas culturais em Angra de tantos reis e rainhas (Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2002) e Juventudes e cidades educadoras (Petrópolis, RJ: Vozes, 2003). Já dirigiu e produziu diversos documentários, como Jovens no Centro (2005), Se eles soubessem (2006), Sou de Jongo (2009), Jovens do Morro do Palácio: cinco caminhos (2011) Uma escola entre redes sociais (2013).

Coletiva – Por que se fala, hoje em dia, em juventudes no plural em vez de juventude? Qual o desafio do educador em lidar com essa pluralidade?

Paulo Carrano – A percepção de que devemos tratar da juventude no plural vem do reconhecimento de que uma etapa ou ciclo de vida não pode ser descrito ou definido de uma única forma. Nessa perspectiva, o marco etário – jovens são aqueles de 15 a 29 anos – é uma sinalização, de todo, insuficiente para compreender como cada grupo social e também cada indivíduo jovem vive a idade da juventude. Os jovens são sujeitos com experiências sociais e culturais múltiplas, possuem origens de classe distintas, moram em diferentes territórios, diversos e desiguais entre si. Também são sujeitos de corpos e identidades múltiplas: homens, mulheres, negros e negras. Possuem gostos e valores distintos e se organizam coletivamente em torno disso. A mesma noção pode ser levada também para a infância, ou as infâncias. A diferença entre crianças e jovens é o maior campo potencial de autonomia dos jovens que lhes permite contestar de forma mais incisiva e permanente orientações e prescrições das instituições. Esse reconhecimento da multiplicidade desafia educadores a rever os esquemas mentais e pedagógicos que orientam as ações educativas sobre aquela figura homogênea que se esconde sobre a categoria “aluno” ou “estudante”. Não acredito em receitas para lidar com esta pluralidade. Mas creio que a abertura para escuta dos sinais emitidos pelos jovens, muitas vezes indecifráveis num primeiro momento, pode ser uma chave significativa para o diálogo no interior da comunidade escolar. Em poucas palavras, poderíamos pensar que os jovens estão na escola, mas não são da escola.

Coletiva – Como estão os jovens do campo, nas escolas das regiões rurais do país e os indígenas?

Paulo Carrano – Temos notado que a realidade dos jovens moradores das pequenas cidades, do campo, e também os indígenas, ainda é pouco conhecida quando comparada com a dos moradores dos grandes centros urbanos. Isso ocorre porque parte significativa dos estudos e pesquisas está concentrada em universidades localizadas nos centros urbanos, notadamente do sul e do sudeste, e também devido ao caráter continental do país, algo que encarece sensivelmente o trabalho de investigação em áreas mais afastadas. De toda forma, temos dados suficientes para dizer que as condições de vida dos jovens nas áreas rurais é prejudicada pela ausência de políticas agrárias efetivas que possam melhorar a vida de quem mora lá, em especial, uma reforma agrária que pudesse significar expectativas reais de permanência dos jovens rurais em seus lugares de origem, sem, evidentemente, cercear a liberdade de livre circulação e escolha de um novo e urbano lugar de moradia. No caso dos jovens indígenas, temos a urgência de políticas públicas que possam apoiá-los/as a superar o duplo desafio de serem jovens do mundo contemporâneo e, ao mesmo tempo, sujeitos que buscam preservar a identidade cultural indígena. Isso não se faz sem a garantia da permanência em terras ancestrais e, ao mesmo tempo, o envolvimento da sociedade. Para isso, são necessárias políticas de saúde, de escolarização, notadamente de nível médio, de cultura e lazer e de acesso ao emprego. O alarmante índice de suicídios de jovens indígenas, se comparado com as médias nacionais e internacionais para a mesma idade, expressam a situação de sujeitos que experimentam um estado mórbido provocado por realidades em que as condições não permitem a vivência da cultura e da identidade original nem tampouco a integração na sociedade não indígena.

Coletiva – E aqueles que moram na periferia das cidades ou nas favelas?

Paulo Carrano – A multiplicidade de formas de ser e viver “em favela” ou “periferia” não nos permite elaborar uma única definição sobre esses múltiplos contextos. Contudo, sabemos que o processo desigual do desenvolvimento brasileiro, e também o racismo, relegou para os moradores de favela e periferias das cidades um lugar de sub-cidadania. Nesse sentido, políticas de caráter territorial orientadas para os jovens moradores de favela e que tenham como horizonte promover o acesso aos bens culturais e materiais da vida na cidade necessitam ser formuladas e sustentadas com recursos materiais e humanos adequados. É preciso dizer também que são os jovens moradores de favela, principalmente os negros, que sofrem o que já se convencionou chamar de “genocídio” da juventude negra. No Brasil, os jovens negros têm 2,5 vezes mais chances de serem assinados do que jovens brancos. São dessas margens da vida na cidade que emergem estimulantes iniciativas de organização juvenil e ocupação cultural e política do espaço público. São jovens rappers, dançarinos do passinho ou adeptos do funk, midiativistas de favela, organizadores de saraus poéticos, fotógrafos e video-makers de favela que se utilizam dos contemporâneos recursos de comunicação e produção de imagens e sons para reivindicar direitos, denunciar injustiças – notadamente aquela cometida pelas forças policiais em favelas – ou simplesmente produzir espaços-tempos de lazer e cultura à revelia das políticas públicas que não foram produzidas para eles e elas das periferias e favelas.

Coletiva – A seu ver, como seria o modelo de Ensino Médio capaz de atender a tantas diversidades?

Paulo Carrano – Faria sentido um modelo único diante da multiplicidade de percursos formativos que podemos desenhar? Antes mesmo de pensarmos em modelo, precisamos lutar para assegurar que o Ensino Médio seja efetivamente um lugar de formação humana integral. E o que seria isso? Seria a criação de possibilidades que pudessem favorecer aos estudantes uma consistente base de conhecimentos – e também de valores cidadãos – que lhes permita um pleno desenvolvimento. Para utilizar o dito popular, pode-se chegar à Roma por muitos caminhos. O prolongamento da jornada diária de permanência na escola, muitas vezes apontado como solução, é apenas uma das possibilidades de qualificar o ensino médio. Antes mesmo de pensarmos em modelos que possam surgir como soluções mágicas de ordenamento institucional, é preciso enfrentar nossos grandes desafios. Elenco alguns: a) melhoria da infraestrutura das escolas; b) professores com jornada completa e dedicação exclusiva, salvaguardado o tempo necessário de estudo e preparação de aulas; c) salários e carreiras compatíveis; d) elaboração de currículos e metodologias que tenham como horizonte a integração de elementos-chave da formação integral, tais como ciência, tecnologia, cultura e diálogo amplo com o mundo do trabalho, sem a instrumentalização empobrecedora dos treinamentos para o mercado de trabalho. Não é demais lembrar que a oferta de ensino médio no Brasil é muito mal distribuída. Há verdadeiros vazios de escolas que obrigam estudantes a enormes deslocamentos, muitas vezes sem a infra-estrutura de transporte adequada, ou mesmo sem apoio na forma de vale-transporte ou bolsa. Não é excessivo dizer que só é possível lutar pela melhoria da escola, se essa houver.

Coletiva – Como você vê hoje a experiência entre gerações na educação? Faz sentido falar em conflito de gerações?

Paulo Carrano – Eu não diria que há efetivamente um conflito de gerações na escola ou na educação, em geral, e nem mesmo nas famílias. Conceitualmente, um conflito de gerações pressupõe o choque de valores e interesses entre as idades que nos coloca diante do limite da ruptura institucional. A chamada “revolta estudantil” de 1968 pode ser caracterizada como um desses momentos da história. Ou seja, os valores dominantes das instituições e da cultura do mundo adulto já não faziam mais sentido para os jovens da época. Daí o conflito fundamental. O que me parece que existe, sim, em nossas instituições educativas é uma sensível dificuldade de relacionamento. Chamamos isso de “o jogo de culpados”. Alunos criticam professores por esses não lhes compreenderem ou respeitarem e professores elencam um mar de problemas, em especial aqueles relacionados com o desafio da autoridade por parte dos jovens. Do meu ponto de vista, a chave para sair desse jogo de culpados é o investimento nos relacionamentos. Quando eu digo: “o meu aluno é um problema”, estou criando um polo problemático. Por sua vez, a sentença “temos um problema de relacionamento”, afetivo ou cognitivo, abre um mundo de possibilidades.

Coletiva – Qual seria a solução?

Paulo Carrano – Parece haver uma dificuldade real de lidar com o estudante, jovem ou não, como um sujeito portador de experiências significativas e também de saberes que poderiam, se convidados, fazer parte do jogo da aprendizagem escolar. Mas essa abertura para o outro requer um esforço adicional dos educadores e passa pelo diálogo e reconhecimento de que aquele que chamamos de “aluno” ou “aluna” é muito mais do que um ser passivo que precisa ser ensinado ou mesmo educado, independentemente daquilo que cada um traz em si como experiências, saberes e expectativas de aprendizagem. As próprias bases da autoridade mudaram. O velho ditado “manda quem pode e obedece quem tem juízo” não faz mais sentido para uma geração que tem diante de si um mundo de alternativas e referências com as quais pode e precisa lidar.

Coletiva – De que maneira as escolas podem estar preparadas para articular o uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC) na consolidação da autonomia dos jovens dentro de um projeto pedagógico? Em que medida podemos falar de socialização online?

Paulo Carrano – As escolas, antes de tudo, deveriam se convencer de que não são a fonte do acesso ao saber. Isso parece uma obviedade, mas, em nossos cotidianos escolares, parece que ainda resiste o mito de que a escola irá apresentar o mundo aos seus estudantes. Isso significa dizer que a “instrução” ou o saber escolar perdeu o sentido? Não acredito nisso, mas que, sim, é preciso dialogar com a multiplicidade de fontes de acesso à informação e ao conhecimento e tirar partido delas no processo de escolarização.

O que a internet trouxe como possibilidade – especialmente esta internet que chamamos de 2.0, compartilhada, interativa  na qual cada um pode ser o emissor de informação – foi desmassificar o processo de emissão de mensagens que já foi monopólio dos grandes meios de comunicação. Hoje, qualquer um pode da sua casa, do seu computador e do seu celular emitir opinião e atingir um grande número de pessoas no bairro, no país ou mesmo em diferentes lugares do mundo. Então, as verdades se pluralizaram, já não vêm apenas de um único centro. Isso não quer dizer, vale a pena frisar, que haja total horizontalidade. Os poderes de enunciação nas redes são assimétricos. Há ainda polos emissores de verdades informacionais que são hegemônicos. As grandes redes de televisão, por exemplo, são exemplo disso. Temos no Brasil a hegemonia de uma rede de televisão que exibe em cerca de 99% dos municípios. Duas grandes redes de televisão hegemonizam a transmissão de informação no nosso país, mas há uma contrafação disso na possibilidade de cada um ser fonte de informação e um emissor significativo de mensagens. Aqui estamos diante de um desafio educativo. O jornalismo, por exemplo, ao longo da sua história, construiu valores de apuração de fatos, de separar fato de inverdade, de respeitar fontes, checar informações, enfim, todo um jogo de conhecimento, de construção do saber e de ética que não se aprende só porque se tem um canal disponível para emitir notícias ou opiniões. Essa é a grande questão, para mim. Eu vejo que muitas das informações que circulam pela internet não são checadas, não são historicizadas, muitas montagens de vídeo são a-históricas. Se eu quero fazer uma crítica, por exemplo, ao poder e pego um ditador da década de 30 e coloco um presidente da redemocratização do Brasil no mesmo vídeo, dizendo: “isso tudo representa o poder”, isso é uma informação pobre, a-histórica. A grande questão não é nem tanto a mensagem pobre, mas qual a capacidade do leitor de filtrar essa informação. Estamos diante do desafio de construir filtros e realizar aquilo que o literato Umberto Eco chamou de a “fina arte da discriminação”, ou seja, de saber selecionar o fato da versão e a informação de qualidade do inverídico e da manipulação. Não é que existam pessoas produzindo informações equivocadas. Isso pode ser visto pelo seu lado positivo, isto é, mais pessoas podem até falar coisas erradas ou inverdades. O grande problema é se o outro lado não responde adequadamente com pessoas capazes de filtrar e separar e fazer boas listas sobre informações e conhecimentos relevantes. Processos de socialização ocorrem durante toda a vida. A sociologia definiu a socialização primária como aqueles processos que ocorrem nos primeiros anos de vida, ainda em família. As novas socializações (escola, grupo de amigos, mídias etc.) se caracterizariam como “socialização secundária”. Alguns autores irão, ainda, falar em socialização terciária para tentar explicar as novas aprendizagens e reconfigurações da vida que possam ocorrer na velhice. Dessa forma, sim, há socializações se processando no ambiente online. E isso coloca um acento especial na capacidade de cada um em realizar escolhas diante de tantas possibilidades formativas. Parece-me que é sobre o fortalecimento dessa capacidade de realizar boas escolhas que a escola precisaria focar a sua ação, muito mais que estabelecer listas de conteúdos que devem ser ensinados.

Coletiva – Como você entende a luta dos jovens paulistas que ocuparam as escolas? Qual o significado político e simbólico dessa ação?

Paulo Carrano – A ocupação de escolas por estudantes em São Paulo foi algo extraordinário, tanto pela alteração do cotidiano da rede estadual pública, quanto pelos sinais emitidos para a sociedade brasileira sobre a importância de se mobilizar em bases democráticas pela qualidade da escola. As ocupações estudantis foram uma verdadeira resposta à reorganização escolar anunciada pelo Governo estadual, que previa o fechamento de 93 escolas estaduais e a transferência de alunos para readequação da rede a partir de uma divisão de unidades por ciclos. A reorganização, caso fosse efetivada, afetaria a vida de 311 mil estudantes e 74 mil professores. Os estudantes em São Paulo deram, então, resposta cívica ao autoritarismo de estado, que decretou o fechamento de escolas sem ouvir as comunidades escolares. Eles e elas também deram novos sentidos ao uso do espaço público da escola. Produziram tempo livre cidadão, lúdico-criativo e cooperativo, em escolas aprisionadas pela lógica da produtividade dos testes, da competição, do ranking e da perda de autonomia de professores e do corpo técnico, estes cada vez mais transformados em aplicadores de regras que não elaboraram, mas que precisam aplicar e zelar para que os processos adotados atinjam a eficácia dos resultados projetados na forma de índices quantitativos de rendimento. Enfim, estudantes transformaram em questão política, fizeram cidadania daquilo que estava normalizado como racionalidade técnica inconteste.

Coletiva – Como tornar as instituições de ensino uma arena de diálogo com o adolescente?

Paulo Carrano – Com esta pergunta tenho a percepção que corro um duplo risco, em primeiro lugar, de me repetir em relação ao que foi dito anteriormente e, em segundo lugar, de prescrever regras de relacionamentos para professores e estudantes. Contudo, lembrei-me de um dito do poeta espanhol Antonio Machado, que formulou aquilo que chamou de “método para o diálogo”, e com ele finalizo: “Para o diálogo? Primeiro pergunte, depois escute”.

Para saber mais

Violência contra jovens:

BRASIL. Secretaria-Geral da Presidência da República, Secretaria Nacional de Juventude, Ministério da Justiça e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Índice de vulnerabilidade juvenil à violência e desigualdade racial 2014. Brasília: Presidência da República, 2015. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002329/232972POR.pdf&gt;

Juventude e ensino médio:

Observatório Jovem (www.uff.br/observatoriojovem)

Portal EMdiálogo (www.emdialogo.uff.br)

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