Artigo publicado no livro “Juventude e Políticas no Brasil. Marilda Aparecida de Menezes; Valmir Stropasolas e Sergio Botton Barcellos (orgs.)/NEAD/MDA/SNJ/IIICA – Brasília: Secretaria Nacional de Juventude, 2014. Acesse o arquivo do livro.
Paulo Carrano (Faculdade de Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação/UFF)

Este artigo surge do desafio e do prazer que foi o diálogo na oficina “Comunidades e povos tradicionais rurais: igualdade étnico racial”, um dos eixos temáticos do Seminário Nacional de Juventude Rural realizado em maio de 2012 na cidade de Brasília. Nesta oficina, impressionou-me a frase de uma participante moradora de quilombo, disse ela: “É danoso se olhar no espelho e não se ver”. É possível que esta expressão, assim como o polissêmico ponto de jongo sobre o qual tratarei mais a frente, traga muitos significados ocultos. Mas, para mim a frase significou o grito de uma individualidade que é também um corpo coletivo, que carrega a herança de um passado e de um ainda presente que pesou, e ainda pesa, no processo de libertação e emancipação humana de milhões de negros e negras no Brasil e nas Américas. Mas que é também um corpo de memórias e culturas compartilhadas em contextos comunitários e que clama e luta por reconhecimento.
É partindo da provocativa afirmação da jovem quilombola que busco avançar neste texto. Tratarei da questão de jovens de comunidades de quilombo que vivem o duplo desafio de viver a condição juvenil contemporânea marcada por intensos processos de apelo à individualização social, mas que também são herdeiros das tradições e lutas inconclusas das comunidades negras em sua busca pela conquista do reconhecimento, o direito à terra e condições de vida digna. Neste contexto, apresento ao final do artigo nossa experiência de diálogo e pesquisa com jovens de uma das comunidades de jongo e quilombo no Rio de Janeiro que pode servir como analogia para outros contextos comunitários onde tradição e inovação cultural se friccionam e dialogam.
Juventudes, territórios e tradições
As instituições modernas foram as responsáveis por harmonizar as condutas individuais numa representação social que passou a ser denominada “a sociedade”. A escola, neste sentido, foi uma instituição modelar da modernidade sendo criada para realizar o princípio da unidade (do) social. Para isso, constituíram-se programas institucionais escolares capazes de inibir ou mesmo rejeitar a diversidade de culturas, condutas e crenças de base comunitária.[2] É neste sentido que se pode afirmar que o princípio da universalidade da sociedade moderna se põe contra a própria ideia de comunidade. Ainda que não seja o objetivo deste artigo, é importante ressaltar que muito das dificuldades da implementação de uma educação escolar diferenciada e referida ao diálogo multicultural encontra-se no princípio que rejeita os sujeitos concretos da diferença cultural quer sejam eles negros, índios, mulheres, homossexuais ou qualquer outra identidade que não se faça reflexo no espelho da escola do universalismo abstrato.
De um modo sintético é possível afirmar que os jovens corporificam as tensões entre os processos de socialização e individuação.[3] Os jovens de todos os cantos do planeta vivenciam novas condições de socialização que se diferenciam dos processos educativos e de integração social vividos pelos seus pais e outras gerações precedentes. Este é um movimento comum e faz com que cada nova geração experimente e produza “o novo” que, em muitas ocasiões, é considerado pelos adultos como fator de corrupção dos costumes e das tradições.
Ao falarmos de jovens de “comunidades tradicionais” corremos o risco da promoção de essencialismos identitários. A identidade, mesmo em territórios que preservam um diálogo ativo com a tradição, não pode ser confundida como um objeto estável, imutável. Se ela pode ser compreendida como algo que se transmite “de pai para filho” deve ser no sentido de que aquilo que o pai viveu não será o mesmo que é hoje vivenciado pelo filho. Neste sentido, a identidade cultural é, sim, um processo dinâmico e que se constitui em múltiplos jogos relacionais no tempo e no espaço entre as diferentes idades. Jogos esses que se recusam a ser catalogados em esquemas culturais e políticos pré-fixados e que sempre nos desafiam a buscar compreender e analisar processos históricos e territórios concretos de atuação. Assim, desde já, nos afastamos da possibilidade de pensar de que haveria uma única forma de se viver a juventude em comunidades tradicionais, ou mesmo que existiria de fato uma única e homogênea “juventude quilombola”.
É na consideração do desafio contemporâneo apontado acima que, sem cairmos na essencialização da tradição ou dos territórios de identidade, podemos reconhecer as comunidades de tradição como ancoragens (RAMOS, 2006) de subjetivação para os jovens que podem organizar suas individualidades em diálogo com referências comunitárias estáveis. Em verdade, sob determinadas circunstâncias, as comunidades podem se constituir em verdadeiros patrimônios de possibilidades de orientação pessoal e coletiva. É bem verdade que as imposições da origem social e familiar podem se apresentar também como entraves ao processo de individuação acima referido.
A experiência de viver o tempo de juventude em comunidades orientadas pela tradição é duplamente desafiadora. Se, por um lado, os jovens não podem “escapar” de ser sujeito deste tempo presente da aceleração e globalização contemporânea que a tudo e a todos alcança no contexto de uma sociedade individualizada, por outro lado, estes se veem diante do desafio de se constituírem como herdeiros de tradições e memórias. Os territórios de identidades são históricos e se fazem na permanente tensão dialética entre a permanência e a mudança social. Estes são, portanto, os territórios vivos das comunidades de tradição que atualizam no presente os sentidos que herdam ativamente do passado.
Assim, o território não pode ser concebido como algo fixado mas como uma construção social, uma relação que não se identifica com uma essencialidade espacial dada de antemão aos sujeitos sociais. O território possui uma dupla dimensão, a material-concreta (política e econômica) ao mesmo tempo que encerra uma dimensão subjetiva e/ou simbólica (HAESBART, 2004).
Giddens (2001) em busca de uma denominação para o tipo de sociedade na qual vivemos a denominou como “pós-tradicional”. Esta destradicionalização das sociedades seria promotora do aumento da incalculabilidade sobre o destinos sociais. As múltiplas alterações no plano do eu e da intimidade transformaram as experiências cotidianas e se refletem numa noção de tradição em constante mutação. É correto dizer que a tradição se orienta para o passado de forma que este exerça forte influência sobre o presente. A tradição, contudo, também diz respeito ao futuro, pois, as práticas tradicionais estabelecidas são utilizadas pelos grupos sociais como uma maneira de organizar o tempo que virá. Este mesmo autor, assim define a tradição:
Na minha opinião, a tradição está ligada à memória, especificamente aquilo que Maurice Halbawachs denomina “memória coletiva”; envolve ritual; está ligada ao que vamos chamar de noção formular de verdade; possui “guardiães”; e, ao contrário do costume, tem uma força de união que combina conteúdo moral e emocional (GIDDENS, 2001: 31).
É preciso sublinhar que a memória, assim como a tradição, é uma maneira de se organizar o passado no tempo presente. Neste sentido, não se deveria pensar em preservação do passado; mas de sua reconstrução permanente e dinâmica no tempo presente. Assim como, obviamente, os adultos e mais velhos tem um papel fundamental nas comunidades tradicionais na condição de guardiões da memória, também os jovens jogam um papel estratégico na continuidade da tradição no tempo e no espaço.
No lugar de pensarmos a preservação cultural em comunidades tradicionais como o recolhimento de narrativas de um passado mítico a ser inventariado e preservado tal como imaginamos que originalmente ele teria ao ser “inventado”[4], seria mais adequado apreender o tradicional como parte da busca de reconstituição de um passado pleno de sentidos na experiência do tempo presente. Nas comunidades ancoradas nas culturas orais, os mais velhos na condição de guardiães das tradições, possuem o tempo disponível para identificarem os detalhes dessas tradições nas interações com os outros de sua idade para que possam ensinar aos mais jovens. Nessas interações entre as gerações é comum que determinados jovens sejam eleitos e entrem em processos rituais de aprendizagem para que se constituam como os futuros guardiães da memória da comunidade. É preciso, contudo, que os jovens encontrem sentido nesses ensinamentos da tradição carregados que estão de uma “verdade formular”.[5] Caso os jovens não se enxerguem também como atores significativos deste jogo do passado que se faz presente não haverá sinergia entre as diferentes gerações e, concomitantemente, não haverá futuro para a tradição que se quer levar adiante.
Podemos compreender a tradição como sendo manifesta em processos sociais duráveis que se reapresentam no tempo e no espaço na forma de repetições ritualizadas. A tradição se constitui numa espécie de verdade em oposição a qualquer tipo de indagação racional.
Juventudes e quilombos no Brasil
As comunidades quilombolas constituem um conjunto heterogêneo de agrupamentos humanos de negros e não uma unidade territorial, histórica e cultural. Neste sentido, ainda que se possa falar política e legalmente na existência de quilombos, é preciso cuidar para não encerrar a diversidade de contextos comunitários numa definição unitária para todo o território nacional que apague a multiplicidade dos contextos comunitários e histórias locais. É possível, contudo, inventariar características que nos permitem reconhecer o processo de constituição de identidades quilombolas e de uma “questão quilombola” que se inserem num dos mais radicais desafios para a democratização plena da sociedade brasileira que não acertou contas com o seu passado escravista e que ainda tem no racismo um dos seus traços culturais.
Apenas 10% das comunidades quilombolas brasileiras são regularizadas (OLIVEIRA, 2014). A regularização com a emissão do título de posse coletiva da terra é um processo legal, burocrático e administrativo demorado. A Lei de Terras de 1850 no Brasil desestruturou a possibilidade do acesso universal à terra e criou fragilidades para a população remanescente de quilombos. Ainda que exista o direito à terra, este é questionado e dificilmente é concretizado (IPEA:SEPPIR, 2014)[6].
O Programa Brasil Quilombola (PBQ)[7] que reúne ações para as comunidades remanescentes de quilombos considera o levantamento da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, que mapeou 3254 dessas comunidades – dentre as quais 1.342 são certificadas pela Fundação (BRASIL/MDS, 2014).
As dificuldades para o reconhecimento e regularização da posse coletiva da terra, sem dúvida, é situação que fragiliza a expectativa de permanência de jovens em suas comunidades de origem. Em grande medida também para muitos jovens quilombolas a luta pelo reconhecimento e a titulação é fator que forja identidades coletivas e fortalece o pertencimento ao lugar de memórias que é o quilombo. No contexto desta luta pelo reconhecimento e titulação das terras, os jovens quilombolas tem assumido posições de destaque. A afirmação do território quilombola forja identidades coletivas e constitui alianças para além dos próprios territórios de origem, com técnicos governamentais, defensores públicos, pesquisadores universitários e outras comunidades em luta por direitos. Neste sentido, é possível reconhecer os jovens quilombolas como atores contemporâneos de movimentos herdeiros das antigas e resistentes lutas pelo direito à terra desde a escravidão.
Jovens de quilombos
A bibliografia de referência sobre a juventude rural reitera dados e análises que configuram o quadro de difíceis condições de vivência da condição juvenil em contextos de ruralidade, promotores de processos de êxodo para as cidades, envelhecimento e masculinização da população do campo (CASTRO, 2009; CARNEIRO, 2005; CAMARANO e ABRAMOVAY, 1999). Castro (2009) ressalta o peso da posição hierárquica de submissão aos adultos, em especial os familiares, e as adversas condições sociais e econômicas para a produção familiar no campo e assinala:
Diversos estudos no Brasil e em outros países apontam para a tendência da saída, nos dias atuais, de jovens do campo rumo às cidades […]. Se essas pesquisas confirmam o deslocamento dos jovens, outros fatores complexificam a compreensão desse fenômeno. O “problema” vem sendo analisado através de dois vieses. Há certo consenso nas pesquisas quanto às dificuldades enfrentadas pelos jovens no campo, principalmente quanto ao acesso à escola e trabalho […]. Outro viés tem como principal leitura a atração do jovem pelo meio urbano, ou ainda, pelo estilo de vida urbano (CASTRO, 2009, p. 189).
Uma das dificuldades sentidas pelos jovens quilombolas para acessar direitos na proximidade de seus territórios, além de problemas relacionados com a mobilidade, a segurança, a saúde e o acesso ao lazer, encontra-se na escassa oferta de educação de nível médio. O Censo da Educação Básica (INEP, 2012), considerando as matrículas na educação básica para escolas localizadas em áreas diferenciadas – remanescentes de quilombos, terras indígenas e assentamentos da reforma agrária – indica ligeira queda de matrículas entre os anos de 2011 e 2012. A expansão da educação infantil foi tímida e a matrícula no ensino fundamental representa mais de 70% da matrícula na educação básica nessas áreas diferenciadas. Ainda que o relatório do INEP ressalte que o ensino médio teve forte expansão nas áreas remanescentes de quilombo e nos assentamentos, em números absolutos, o número de matrículas no ensino médio é de apenas 12.262 matrículas para todas as comunidades de quilombo no Brasil. O total de matrículas foi de 212.987 em todos os níveis da educação básica em áreas de quilombo no ano de 2012.
Os jovens quilombolas não diferem significativamente dos demais jovens rurais naquilo que se refere às condições objetivas e subjetivas que os impulsionam para a busca de melhores alternativas de vida nas áreas urbanas. O desejo de ir para a cidade é, sem dúvida, motivado pela atratividade simbólica da vida urbana, mas também é fortemente determinado pela falta de perspectivas para a permanência nas áreas rurais. Estudos apontam também para o desencanto com o trabalho braçal agrícola o que vem motivando a busca por outras alternativas laborais relacionadas com o território; tais como o turismo rural, as tecnologias de comunicação e o trabalho em serviços não diretamente ligados à lida com a terra.
As políticas públicas necessitam contemplar novos arranjos econômicos para a juventude rural ao mesmo tempo que busquem o diálogo com as novas identidades culturais juvenis, estas cada vez mais articuladas aos sentidos de ser jovem em contextos de urbanidade que não diferem radicalmente dos sentidos de ser jovem também em contextos rurais.
O caso da comunidade quilombola e jongueira de Santa Rita do Bracuí[8]
No ano de 2007 produzimos o filme-pesquisaque intitulamos“Bracuí: velhas lutas, jovens histórias” (BRACUÍ, 2007).[9] O trabalho foi realizado na comunidade de remanescentes do Quilombo Santa Rita do Bracuí, que se localiza em uma área rural às margens da rodovia Rio-Santos, no município de Angra dos Reis/RJ. A estimativa é a de que o quilombo do Bracuí seja constituído por 70 famílias [10]. O objetivo da pesquisa foi investigar as ações coletivas de um grupo de jovens moradores da comunidade. O Quilombo do Bracuí foi reconhecido oficialmente em 1998, porém, encontra-se, ainda hoje, lutando pelo seu processo de titulação[11].
O que mais se evidenciou foi o fato de que ser quilombola é identidade em construção e de que, para os jovens, a luta pela terra é uma herança dos mais velhos que eles tomaram para si e atualizaram por meio da legislação sobre os quilombos e por formas institucionais de luta.
O sentimento de pertencimento dos jovens à comunidade, a determinação de lá viverem e a forma como atualizaram e se apropriaram da luta pela terra nos faz compreender o próprio conceito de quilombo e entender que, no Bracuí, a terra é um valor passado de uma geração a outra. As pessoas lidam com as tensões provocadas pela especulação imobiliária, tão presente na região, e com o impacto desta lógica na vida de vários moradores do quilombo, como mostra o filme.
A jovem Angélica que entrevistamos anunciou que os jovens do quilombo não eram todos agricultores dando pistas para que considerássemos as dimensões contemporâneas, urbanas e tecnológicas daquele quilombo que se apresentou menos rural do que imaginávamos: “Não adianta você negar, você querer colocar os jovens (no filme) capinando, plantando, num vai… nós vamos estar aparecendo uma imagem falsa”.
Os jovens informaram que só recentemente “descobriram” que eram quilombolas. O contemporâneo processo de reconhecimento e titulação das terras abertos pela Constituição de 1988 possibilitou a existência de um campo político-institucional que permitiu a ressignificação da luta pela território e renomeação da identidade negra que os mais velhos associavam muito mais à agricultura e ao sindicalismo rural. O reconhecimento do lugar dos mais velhos na comunidade é estruturante em suas identidades. No processo de produção do filme fomos guiados pelos jovens até aos antigos moradores do quilombo que traziam a memória das lutas pela terra contra os grandes projetos de desenvolvimento na região, os grileiros e os empreendimentos imobiliários ligados ao turismo.
A compreensão sobre os diferentes usos da terra não se dá sem conflito, apesar de jovens e velhos a considerarem como um valor ancestral. Para atores significativos do filme e das lutas do quilombo do Bracuí, o patriarca Zé Adriano e o jovem Leandro (avô e neto), a posse da terra só vale se for para se viver da terra. Seu Zé Adriano fez críticas às escolhas profissionais feitas pelos jovens da comunidade que cada vez mais se afastam do trabalho na lavoura.
Seria errôneo pensar, contudo, que todos os jovens compartilham o sentido da ocupação da terra que revela o jovem Leandro. Jovens que estudam e trabalham fora do quilombo, têm projetos diferenciados dos mais velhos para o uso da terra; fazem curso de agrofloresta e de ecoturismo e exploram o uso e os produtos derivados das bananeiras utilizando conhecimentos que aprenderam em projetos sociais de desenvolvimento. A ampliação dos níveis de escolaridade para o Ensino Médio, e mais recentemente com a entrada de jovens em cursos universitários, alteram as expectativas e projetos de vida na relação com o território.
O conceito de pertencer a um quilombo e “ser quilombola” parece ser de mais fácil apreensão para os mais jovens que já entraram na luta no contexto da afirmação dessas categorias de identidade e territorialidade. Os jovens não desconhecem a crítica que os mais velhos formulam sobre seus projetos alternativos ao trabalho com a lavoura, entretanto, ainda que demonstrem compreender o sentido das críticas, afirmam que querem ter uma relação de maior mobilidade na relação com o quilombo, ou seja, querem poder sair, estudar, trabalhar, desenvolver seus projetos e se divertir na cidade e em outros lugares, mas que é no quilombo que querem morar. Não foram poucas as vezes que ouvimos frases do tipo: aqui é o meu lugar. Por fim, é possível sintetizar que o filme revela uma comunidade quilombola em movimento, em diálogo intergeracional entre jovens e velhos; uma comunidade que se apropria de forma dinâmica, e não sem hesitações ou conflitos, do conceito de quilombo. E que, a sua maneira, atualiza as lutas históricas pela terra e a identidade negra.
O jongo na arte da mediação entre as idades no território
As comunidades tradicionais, e não apenas as de quilombo, possuem seus ritos, musicalidades, ritmos e mitos fundadores que desafiam jovens e velhos a selecionar aquilo que o presente reelaborará do passado. Enfrentar este desafio intergeracional é a condição para que as memórias sociais coletivas sigam renovadas para o futuro.
Na comunidade quilombola do Bracuí o jongo é o elemento cultural principal dessa mediação. O jongo, também conhecido como caxambu, tambú ou tambor, é característico de algumas comunidades negras do sudeste do Brasil.
Em seus “fundamentos” encontra-se a presença de dois ou mais tambores, de uma roda de dançarinos e cantadores e de casais que se revezam dançando em “quase umbigada” ao centro da roda. A roda de jongo opera como coro que repete versos daqueles que “colocam pontos”; estes podem narrar o cotidiano, a religiosidade ou a política; os pontos louvam santos e divindades africanas, lembram a libertação dos escravos, fazem gracejos, criticam ou provocam outros jongueiros. Os pontos não são lineares, mas ambíguos e metafóricos e articulam ludicidade, religiosidade e relações agonistas que se estabelecem no delimitado e grande mundo simbólico que é a roda jongueira. É comum que desafios à decifração de enigmas sejam lançados e repetidos pelo coro até que alguém os decifre. Na simbologia jongueira, acredita-se que um mestre espiritualmente vinculado aos antepassados africanos seja capaz de “amarrar” – enfeitiçar – alguém pela força da palavra; da bala ou da flecha que fere[12]. Inicialmente restrito aos “pretos velhos”, o jongo é praticado hoje por pessoas de todas as idades, em áreas rurais e urbanas, como diálogo intergeracional – não sem conflitos – que atualiza sentidos culturais e fortalece laços territoriais e comunitários.
Este jongo antes restrito ao universo adulto e masculino se transformou no tempo e no espaço. No tempo porque as rodas não mais se atém ao calendário das festas religiosas ou das obrigações sociais ritualizadas, tais como os funerais ou festa de santos; no espaço porque a roda de jongo transcendeu o próprio terreiro comunitário e passou a frequentar outros territórios servindo mesmo para ampliar a visibilidade da luta pelo direito à terra. Inegavelmente, os jovens e não apenas os de hoje são atores chave deste processo de reconfiguração desta tradição que se move para não perecer.
Neste artigo não será possível avançar na descrição do circuito cultural e político da cultura do jongo e de seu expressivo lugar no jogo do novo e do velho que se estabelece na comunidade quilombola do Bracuí e em outras comunidades de jongo e quilombo. Contudo, interessa reafirmar que a integridade de uma tradição não vem da simples persistência da cultura no tempo, mas de seu trabalho contínuo de reinterpretação. Os jovens, sujeitos ativos deste processo, não raras vezes são acusados de corromperem a tradição ao introduzirem elementos considerados inautênticos ou não tradicionais nas práticas que constituem a herança cultural comunitária. Eles também sabem, contudo, participar do que denominamos em outro artigo de “jogo da autenticidade cultural” que os provoca na relação com os de fora da comunidade a afirmar signos que revelem que a comunidade segue sendo espaço de resistência e preservação de suas identidades culturais (CARRANO et al, 2007: 275-276).
Seu “Carmo Moraes”, jongueiro da cidade de Angra dos Reis, comentou sobre a introdução da letra de um funk em um ponto de jongo feito por alguns jovens da cidade. Disse ele, do alto de seus 80 anos: “Pode misturar o jongo. Mas não pode deixar perder o fundamento (dos pontos cantados, da dança e da batida do tambor, esclareceu)”. Esta foi uma passagem que recolhi no contexto da pesquisa para a minha tese de doutorado em Educação nos idos de 1997 (CARRANO, 2002 e 2003). Hoje, os jovens trazem de “contrabando”, além da musicalidade do Funk, letras, roupas e a rima do hip hop, mas parecem conscientes do equilíbrio instável que pode deixar cair o fundamento. É neste sentido que se apresentam sempre em busca de registrar memórias e “verdades” dos mestres e guardiões da memória da cultura jongueira. E para isso não lhes faltam os aparatos tecnológicos de registro, em especial, câmeras de vídeos, máquinas fotográficas e aparelhos celulares [13].
A juventude parece dizer que ritualidade não significa mera repetição do que foi consagrado como tradição. Pelo contrário, nossas observações verificam que os jovens atraem a tradição para a prática social atualizada e fazem com que esta se surpreenda ou que se assuste com o novo e caminhe. Parece ter sido isso que disse uma jovem num dos encontros de jovens lideranças jongueiras[14]: “os jovens assustam”!
Referências Bibliográficas
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[1] Artigo publicado no livro (prelo) Juventude e Políticas no Brasil. Marilda Aparecida de Menezes; Valmir Stropasolas e Sergio Botton Barcellos (orgs.)/NEAD/MDA/SNJ/IIICA – Brasília: Secretaria Nacional de Juventude, 2014.
[2] Desde 2003, com a sanção da lei 10.639, o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana se tornou obrigatório nas escolas de todo o país. Em 2008, a lei 11.645 somou a esse conteúdo a obrigatoriedade da história e cultura indígena nos currículos. A garantia da implementação dessas propostas nas escolas é responsabilidade da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC).http://diversaescola.blogspot.com.br/2011/10/diversidade-sociocultural-brasileira- em.html.
[3] A individuação é o caminho percorrido pelo indivíduo na busca de sua independência suficiente do sistema. Neste sentido, a individuação não deve ser confundida com “individualismo” ou comportamento egoísta. Segundo Alberto Melucci (2004:46), “(…) no processo de individuação tornamo-nos capazes de produzir, de modo autônomo, aquilo que antes necessitávamos receber dos outros. A identidade adulta é, portanto, a capacidade de produzir novas identidades, integrando passado e presente e também os múltiplos elementos do presente, na unidade e na continuidade de uma biografia individual”.
[4] Sobre o conceito de “ invenção das tradições”, ver HOBSBAWN e RANGER (2012).
[5] A verdade formular (grifos meus) é uma atribuição de eficácia causal ao ritual; os critérios de verdade são aplicados aos acontecimentos provocados, não ao conteúdo proposicional dos enunciados. Os guardiães, sejam eles idosos, curandeiros ou mágicos ou funcionários religiosos, têm muita importância dentro da tradição porque se acredita que eles são os agentes, ou os mediadores essenciais, de seus poderes causais. Lidam com os mistérios, mas suas habilidades de arcanos provêm mais do seu envolvimento com o poder causal da tradição do que do seu domínio de qualquer segredo ou conhecimento esotérico (GIDDENS, 2011: 34)
[6] A discussão sobre o processo de regularização fundiária das comunidades quilombolas foge aos objetivos deste artigo. Para saber mais sobre o tema, acesse o documento Territórios Quilombolas – Relatório 2012 (SEPPIR). Disponível em: http://www.seppir.gov.br/publicacoes/relatorio-sobre-os-territorios-quilombolas-incra-2012 . E a página do INCRA que trata das etapas da regularização quilombola:
http://www.incra.gov.br/index.php/estrutura-fundiaria/quilombolas
Documentos consultados em 04.01.2014
[7] O Programa Brasil Quilombola reúne ações do Governo Federal para as comunidades remanescentes de quilombos. Saiba mais em: http://www.portaldaigualdade.gov.br/acoes/pbq
[8] Há uma divergência em relação à grafia do nome da comunidade. Documentos oficiais grifam o nome com a letra “Y”, entretanto, alguns moradores afirmam que esta forma de escrever o nome da comunidade foi herdada por causa do condomínio de mesmo nome que se instalou em terras da comunidade original dos negros da região. Neste texto e também no filme adotamos a grafia com a letra “I” acentuada.
[9] Além de BRACUÍ: velhas lutas, jovens histórias (2007), outros filmes do Observatório Jovem e co-produções também tratam de questões relacionadas com juventude, jongo e identidade negra. Ver: O FADO é bom demais… (2010); SOU de jongo (2010); É minha terra (2008); DEIXA a moreninha passear (2006); Se eles soubessem (2006); SEMENTES da memória (2005).
[10] Conforme informado na síntese da Comunidade Remanescente de Quilombo de Santa Rita do Bracuí pela ONG Koinonia. Disponível em http://www.koinonia.org.br/oq_antigo/atlas/santarita.htm. Consultado em 06.10.2014.
[11] O relatório técnico de identificação e o reconhecimento territorial da Comunidade Negra Rural de Santa Rita do Bracuhy e a delimitação das terras ocupadas pela mesma foi publicado no Diário Oficial da União no dia 19 de novembro de 1998.
[12] Esta seria um dos sentidos da palavra “jongo”. Robert Slenes (Jongos, calangos e folias, 2007), formula a hipótese de que a origem da expressão jongo viria de Kikongo nzongo, de origem umbundu ou songo, dito em Kimbundu, significando flecha ou bala. A expressão em kikongo nzongo myannua, “a bala da boca” seria ou uso agressivo da palavra; haveria também como referência o provérbio umbundu que diz que “a palavra é como uma bala”.
[13] Com a disseminação dos equipamentos de registro audiovisual, também em comunidades de tradição, a transmissão da memória se tornou mediatizada e não depende apenas da oralidade. Muitos jovens dessas comunidades se empenham em registrar, armazenar e disseminar por meios digitais e eletrônicos o que poderíamos denominar como “a voz do passado” e de seus guardiões da memória. Sobre a relação entre memória social, identidade, transmissão e recepção, ver CANDAU (2012).
[14] Encontro realizado na “II Noite do Jongo”, entre 22 e 24 de outubro de 2010, em Vassouras/RJ. Neste encontro, e por iniciativa da jovens lideranças das comunidades de jongo do sudeste foi criada a rede de jovens lideranças jongueiras. Mais informações em: http://www.pontaojongo.uff.br/iv-encontro-de-jovens-liderancas-jongueiras
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