A pergunta provocativa que me fizeram para este artigo* é por que existiriam tantas resistências para se tratar de questões relacionadas com a ampla agenda da diversidade na escola. Há uma longa história de tentativas de exclusão da cultura e da história afro-brasileira e ameríndia e das questões de gênero da vida escolar. E, mais recentemente, temos mais um capítulo no ataque às diferenças, incluindo a diferença de pensamento, com a arbitrária Medida Provisória 746/2016 do governo federal, que reformula de forma dualista o Ensino Médio e retira dos currículos as Artes e a Educação Física e deixam na indefinição de uma arbitrária Base Nacional Comum Curricular, ainda não concluída, a oferta de Filosofia e Sociologia.
A organização do conhecimento na escola brasileira está hoje fortemente orientada para o estabelecimento de “conteúdos universais” que possam ser ensinados e apropriados por todos. No Brasil se disputa o que crianças e adolescentes precisam aprender e o que os professores devem ensinar. Negligencia-se, contudo, o como e em que condições se aprende. Ordenar é sempre mais confortável ao poder do que organizar as condições e dotar as instituições de estruturas para que as comunidades escolares possam organizar as aprendizagens e convivências na base da autonomia e da liberdade. Garantir as condições e proporcionar suportes para que os sujeitos da educação superem seus desafios de ensinar e aprender pressupõe investimentos sociais – estes mesmos que estão sendo congelados por 20 anos em Projeto de Emenda Constitucional (PEC/241) encaminhado ao Congresso pelo governo que emergiu do recente golpe parlamentar de 2016.
Na organização dos currículos escolares há uma evidente secundarização do discurso e das práticas relacionadas com as noções de diferença ou diversidade. É um equívoco colocar em disputa o uno e o diverso. Uma das consequências negativas desta falsa polarização é a de nos afastar de um dos mais importantes desafios civilizatórios no Brasil e no mundo de hoje, que é o da convivência entre os diferentes. Se a escola, mas não só ela, não conseguir trabalhar para que possamos dar uma resposta satisfatória à pergunta “podemos viver juntos?”, caminharemos para formas de apartheid social e barbárie contra tudo aquilo que divergir dos padrões dominantes, quer sejam eles expressos pela aparência do corpo ou diferença de pensamento.
Reconhecemos que existem dificuldades com o conceito de diferença na escola porque há uma questão mais ampla no contexto da própria sociedade. Toda vez que estamos diante de um “outro”, colocamos em jogo também nossos próprios valores. Todo valor expressa crenças, convenções e particularidades que adquirimos ao longo da vida. E os valores são significações já estabelecidas em nossos modos de estar no mundo e representá-lo. Assim, não basta afirmar que somos diferentes. É preciso controlar aquilo que nossa percepção informa sobre a diversidade que emerge das aparências e das representações que temos deste “outro” diferente de nós. Isso porque, ao mesmo tempo em que o olho percebe, ele atribui um valor; e, como nos diz Muniz Sodré (1999), o grau de valor social se deduz da aparência. Na vida social, já pela “cara do outro” se intui um valor social e uma atribuição de conduta. O Brasil vive uma verdadeira epidemia de assassinato de jovens negros e moradores das periferias das cidades. A maior letalidade que recai sobre esses jovens é conferida pelo “estigma” de periculosidade e violência que as forças policiais – e, verdade seja dita, as representações sociais coletivas – projetam sobre este grupo populacional. No Brasil, país com o maior índice de assassinatos do mundo, mais da metade dos homicídios tem como alvos jovens entre 15 e 29 anos. Destes, 77% são negros. Ou seja, em cada dez assassinatos de jovens, oito são negros (ANISTIA INTERNACIONAL, 2016).
Mas a identidade que atribuímos ao outro é algo em movimento. O preconceito, contudo, é algo que fixa a identidade do outro e se transforma numa forma automatizada e empobrecida de conhecê-lo. Esta ignorância do “outro” realmente existente é também uma exclusão afetiva e intelectual; corpórea, enfim. Somente com a busca de uma verdade não violenta orientada para o diálogo com a diversidade, real e concreta, e não aquela imaginada por nossos valores fixados, é que se pode construir o campo do relacionamento que reconhece o outro em sua inteireza.
É comum que pensemos a escola como o lócus da universalidade por excelência. Mas não se deve pensar que existam “conteúdos universais” desprovidos de história. A expansão colonial europeia, que tem seu início no século XVI, criou novo padrão de dominação social expresso na noção de “raça”. Esta foi uma nova chave conceitual, que atualizou a mais antiga das noções de dominação da humanidade, que era o conceito de gênero. E isso significava que toda mulher era, por definição, inferior a todo homem. Até que surge a ideia de raça. A raça classifica “as gentes” como naturalmente superiores ou inferiores. Daí por diante, toda mulher da “raça superior” passaria a ser considerada superior a todo homem da “raça inferior”. Todo homem branco seria superior a todo homem ou mulher das terras conquistadas – aqueles e aquelas dos povos que por imposição conceitual dos conquistadores viriam a ser chamados de “índios”. A escola democrática não pode se realizar sem enfrentar este debate. Para isso, precisa rejeitar a tese da “neutralidade” do conhecimento.
As diferenças escondem relações de poder. É por isso que se torna importante estar atento ao “pluralismo hierárquico”. Ou seja, em muitas situações o discurso da “diversidade” ou do “multiculturalismo” é enganoso e se põe a serviço da ocultação das desigualdades e da manutenção das injustiças. É comum que um discurso apenas elogioso da diversidade abstrata camufle assimetrias entre regiões, classes sociais, cor de pele, gêneros e idades. A adoção pela escola de uma perspectiva que enfrente na prática o diálogo com os grandes temas da diferença (o racismo, as relações de gênero, a violência e o preconceito contra os pobres, os imigrantes, etc.) é um desafio que, bem equacionado, pode fazer com que a escolarização tenha um sentido real no contexto de uma sociedade complexa, diversa e desigual como a brasileira.
Referências:
INTERNACIONAL, Anistia. Jovem Negro Vivo. 2016. Campanha “Queremos ver os jovens vivos”. Disponível em: . Acesso em: 08 out. 2016. SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Rio de Janeiro/petrópolis: Vozes, 1999. 272 p.
* Artigo publicado na Revista| PRÁXIS | SINTE – SC | Outubro 2016 – pp 18-19. Acesse aqui a revista completa.
“Não há debate possível se o Outro é desqualificado e localizado no lugar do inimigo, ou quando se apela para um medo genérico por um inimigo não muito visível” (MACEDO, p. 895, 2015).
Além da MP 746 e da PEC 55/241 citadas na postagem, outro documento que disputa o que ensinar a crianças e adolescentes é a BNCC, que vem como legado do PNE para atingir algumas das metas estipuladas. Por ser uma base comum, ela presa pelo universal, não pelo singular. Ela visa um indivíduo plural e não um único, uma nação comum e não diversa.
Concordo quando diz que “é comum que pensemos a escola como o lócus da universalidade por excelência”, ela isola e concentra um conjunto de saberes que é passado como o correto e o único. É ela quem dá o aval para a base restringir o todo.
Alguns dos argumentos a favor do documento mostram um desejo de controle sobre os discursos e até o planejamento do currículo com base num conhecimento que seja útil ao mercado de trabalho. Ele passa a ser visto como um “instrumento de gestão” do ensino, projetando cada vez mais o desempenho do aluno.
A performance avaliada, conversa com outras discussões já em pauta, como é o caso da Provinha Brasil, que não tinha por objetivo ranquear as escolas por meio da alfabetização e da matemática, mas é o que acontece, como Helena Costa Lopes de Freitas mostra em seu blog (https://formacaoprofessor.com/2013/10/24/provinha-brasil-o-que-vem-avaliando-3/).
“Fazer diferença” é preciso sim, claro, não de qualquer forma. Abarcar em sala de aula outras verdades é fundamental para os diferentes corpos que lá estão.
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Amanda, grato por comentar.
Abraços.
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Atualmente, estamos vivendo um período conturbado na educação brasileira. Um momento em que estudantes estão lutando por seus direitos e por melhores condições de estudo. No entanto, essa luta não tem sido fácil. A cada momento é uma novidade, Escola sem Partido, Base Nacional Comum Curricular, Reforma do Ensino Médio, PEC 55/241. Todas essas propostas irão afetar negativamente a educação brasileira.
O território escolar não é neutro, assim, todas essas medidas buscam delimitar o que pode ser ensinado e discutido nas salas de aula. O processo de seleção dos conteúdos curriculares é uma seleção interessada, pois, levam em conta quais critérios guiam a escolha, a quem favorece a sua inclusão no currículo. Assim, na maioria das vezes os currículos não levam em conta a realidade ao seu redor, e fica distante do das culturas dos alunos.
Pensar a escola como universal e excluir as diferenças, trás grandes malefícios para a educação. A BNCC, tornando-se currículo obrigatório, universal, exclui a diferença, e com isso assuntos tão importantes na sala de aula não vão estar na base. Contudo, a BNCC não visa o bem estar dos alunos, o que é melhor para a escola. Ela é um instrumento de controle, com vários sentidos em disputa. A visão de que com uma base nacional todas as culturas vão ser trabalhadas, não é possível. Por isso, concordo quando diz que “em muitas situações o discurso da “diversidade” ou do “multiculturalismo” é enganoso e se põe a serviço da ocultação das desigualdades e da manutenção das injustiças.” A base defende o direito de aprendizagem de conteúdos, visando provas e testes, deixando as expectativas, direitos e objetivos dos alunos de fora.
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